Arsenal de Guerra dos Estados Unidos: prontidão profissional
Ou: Como Aprendemos a Parar de nos Preocupar e Amar a Bomba!
A Guerra: uma companheira da humanidade por dezenas de milhares de anos
Costuma-se dizer que a prostituição é a atividade profissional mais antiga do mundo, mas, quando prestamos atenção as evidências arqueológicas, fica bastante claro que há outra atividade, ainda que nem sempre tenha sido profissional, praticada por mais tempo.
Pinturas rupestres, como a da imagem acima, comprovam que a guerra está entranhada no espírito humano, tendo feito parte de nossa caminhada neste planeta desde o início. Por este motivo, talvez tenhamos, todos, uma programação evolutiva para um estado constante de alerta.(1)
Algo que no jargão militar contemporâneo, se traduz como readiness (prontidão), mas que, para a maioria de nós, civis, se relaciona com a sensação de insegurança que muitas das grandes cidades modernas provocam.
Tanto em um caso quanto no outro, se revela a consciência que temos do perigo representado pela nossa própria espécie, justificando a existência da polícia nas ruas das cidades e também, a criação e manutenção de um arsenal de guerra pelos Estados.
Isso porque, em seu significado mais abrangente, a palavra arsenal se refere a um conjunto de instrumentos, quais sejam, para ataque ou defesa de uma determinada pessoa ou comunidade, funcionando, idealmente, como uma garantia de segurança.
E nada representa melhor este conceito do que um arsenal nuclear. Parte importante do arsenal de guerra dos Estados Unidos, Rússia, China e um punhado de outros países, detentores de mísseis nucleares em menor quantidade ou, de menor alcance em comparação com os ICBM´s.(2)
Além dos bombardeiros estratégicos de longo alcance e dos submarinos nucleares, espalhados pelo interior dos Estados Unidos, existem centenas de silos de lançamento, construídos desde os anos 1960, ainda sob a ameaça da Guerra Fria
Em princípio, as armas nucleares existem para não serem utilizadas.
Fazem parte de uma estratégia que os americanos chamam de deterrence, ou seja, servem para impedir que outros Estados ataquem o país, uma vez que sabem que podem ser destruídos.
Mas, o arsenal nuclear é apenas uma parte do arsenal americano e como sabemos, é a parte com menor probabilidade de ser efetivamente utilizada, inserida em um conjunto de estratégias para situações inusitadas que, a maioria de nós, considera próxima da paranoia.
Para que se tenha ideia, o conceito de readiness é levado tão a sério, que há diversos planos defensivos e ofensivos preparados pelos vários sistemas de inteligência, até mesmo para eventualidades absurdas, como um improvável “apocalipse zumbi”.(3)
Mas, e se trocarmos a palavra zumbi, por algum tipo novo de doença altamente contagiosa, como uma espécie de raiva transmitida pelo ar, espalhando-se rapidamente, em escala global?
Neste cenário hipotético, encontramos uma base mais palpável para preocupação.(4)
Guerra química e biológica: conceitos não muito distantes de um apocalipse zumbi
De qualquer forma, paranoicos ou não, os planos servem para orientar a composição do arsenal de guerra, considerando todas as possíveis necessidades, que podemos dividir didaticamente em cinco frentes: cibernética; espacial; assimétrica; convencional e nuclear.(5)
As três primeiras são, ao menos oficialmente, proibidas, a penúltima, considerada como uma espécie de mal necessário e a última, indesejada pela maioria dos seres humanos, embora certas mentes militares possam (e talvez devam) considerar como uma opção realista.
Pensando nas três “proibidas”, podemos lembrar de um antigo axioma político, de que na guerra, a primeira baixa é a verdade.
Uma frase ingênua, tanto por considerar que existe uma verdade única, quanto por ignorar que, em caso de guerra, a primeira baixa, são os tratados internacionais.
Por este motivo, um arsenal de guerra como o americano, nunca leva em conta as “proibições” acordadas entre os Estados. Principalmente porque, no ambiente cibernético, por exemplo, as guerras sequer são, ou precisam ser, declaradas.
Não há porque duvidar que, neste exato momento, existam dezenas de operações de espionagem, roubo de dados e testes de possíveis falhas de segurança em sistemas, visando eventuais sabotagens na infraestrutura americana, especialmente, conduzidas por chineses e russos.(6)
Cyberwarfare: no mundo digital, nenhum inimigo é declarado
Embora ninguém espere que estas ações evoluam para algum tipo de evento dramático, como a detonação remota de um míssil nuclear ou o rompimento de uma barragem, há outros tipos de ataques mais simples, com potencial devastador, como interferências no sistema financeiro.
Neste sentido, a própria ideia de um arsenal de guerra se dilui. Tanto que cada uma das agências de segurança, como a NSA, o FBI e a CIA, além das cinco forças armadas americanas, tem seu próprio comando cibernético, embora exista um comando unificado, chamado USCYBERCOM.(7)
Mas, há ainda um outro nível de ameaça neste campo.
O mundo digital, principalmente o militar, depende de cabos de fibra ótica e satélites orbitais ou geoestacionários, o que nos leva a uma frente que parece ter surgido como bravata nos anos 1980, na forma do projeto Guerra nas Estrelas.(8)
No mundo atual, entretanto, qualquer ar de ficção científica que houvesse naquele projeto, foi deixado para trás a partir do momento em que o arsenal de guerra dos Estados Unidos, Rússia e China, passou a contar com sistemas de mísseis para a derrubada de satélites.(9)
Um tipo de equipamento que viola praticamente todas as cláusulas do chamado Tratado do Espaço, assinado ou ratificado por vários países nos anos 1960, mas, reconhecido como válido por todos os membros da ONU, incluindo os três acima citados.(10)
US Army: mais que qualquer outro, dependente da simbiose com a tecnologia
Além disso, o ponto que mais chama atenção nestas novas frentes de batalha, afetando diretamente o arsenal americano, é o fato de que fazem parte de uma estratégia assimétrica, ou irregular, como alguns especialistas chamam, para contraposição à superioridade dos Estados Unidos.
Em outras palavras, russos, chineses e até mesmo nações muito menores, como a Coreia do Norte, podem se impor como uma ameaça, na medida em que buscam por métodos indiretos de confrontação, diluindo também, o próprio conceito de guerra.
Afinal, para que serviriam todos os magníficos porta-aviões nucleares e caças Stealth de quinta geração do arsenal de guerra americano, se não pudessem contar com os sistemas de geolocalização e direcionamento dos quais são dependentes?
A mesma lógica é utilizada por grupos terroristas e alguns outros poucos Estados, suficientemente corajosos para “cutucar a onça com vara curta”.
Situação para a qual, a única resposta americana, por enquanto, se concentra na utilização de uma estratégia geral de intervenções limitadas.
Um bom exemplo recente, é a verdadeira bagunça promovida pela comunidade internacional na Síria.
A parte os eventuais defeitos do governo local, tanto a intervenção americana, quanto a russa, comprovam a percepção do impasse estratégico-militar para o qual estamos chamando a atenção.
Guerra na Síria: uma amostra contundente de que o conceito de guerra convencional está ultrapassado
Um dos confrontos mais sangrentos do século XXI, não tem governos ou nações perfilados uns contra os outros.
Não há exércitos ou colunas de tanques nos campos, em uma clássica oposição entre Estados.
Ao contrário, os discursos internacionais, ainda que falsos, são de cooperação.
Este exemplo rápido, sem entrar em detalhes polêmicos, serve apenas para lembrar que um arsenal de guerra como o americano, foi construído ao longo de décadas, pensando essencialmente, em guerras convencionais.
Algo que parece estar cada vez mais distante da realidade atual.(11)
Neste mesmo sentido, os ICBM´s, que desde a Guerra Fria atendem ao princípio estratégico inserido no conceito de deterrence, assemelham-se mais a peças de museu, que aos arautos da extinção de nossa espécie, como sempre foram vistos.
Não porque não sejam perigosos, mas, porque diante das ameaças contemporâneas, não servem para muita coisa, além de prevenir ataques convencionais.
Justamente, o que um Estado como a Coreia do Norte busca, ao tentar desenvolver estas armas.(12)
Possivelmente, imaginando que, com elas, possa passar a “brincar” de geopolítica internacional, em confrontações dissimuladas, como fazem hoje, os americanos e seus aliados, além dos chineses, russos e umas outras poucas nações insubmissas.
Notas:
(1) A prostituição conta com referências escritas que remetem a algo como 5 mil anos de nossa história, as pinturas rupestres mais antigas, tem cerca de 40 mil anos. Além disso, embora a violência deva ser tão antiga quanto a humanidade, guerras em sentido estrito, contam com sítios arqueológicos de mais de 10 mil anos. Mais a respeito em: The Origins of War, J. Guilaine & J. Zammit, Blackwell Pub. (2005).
(2) Intercontinental Ballistic Missile (ICBM), com alcance variável, mas, sempre superior aos 5 mil quilômetros. Os mais modernos, carregam várias warheads, a bomba propriamente dita, significando que um único míssil, pode ser capaz de atingir mais de um alvo. Para uma visão abrangente sobre estes mísseis no cenário atual: http://index.heritage.org/military/2016/assessments/us-military-power/us-nuclear-weapons/
(3) É discutível se estes planos são sérios ou, apenas um exercício teórico dos serviços de inteligência americanos, o que parece mais provável, entretanto, eles existem: http://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2014/05/o-pentagono-esta-preparado-para-um-apocalipse-zumbi.html
(4) A indústria cultural reflete este medo em várias produções. Recentemente, por exemplo, Michael Bay, o diretor/propagandista das forças armadas americanas, produziu a série The Last Ship, que explora um cenário similar: http://www.imdb.com/title/tt2402207/
(5) A divisão é puramente arbitrária, mas, tem relação com os debates atuais sobre o próprio conceito de guerra. A respeito, ver: http://index.heritage.org/military/2016/essays/contemporary-spectrum-of-conflict/
(6) Além do fato das redes de computadores nunca serem 100% seguras, suspeitas acerca das atividades online de russos e principalmente, chineses, tem sido uma constante nos últimos anos, como se pode ver nesta reportagem: http://www.nytimes.com/2013/05/08/opinion/china-and-cyberwar.html
(7) As informações as quais temos acesso são, obviamente, escassas e pouco esclarecedoras, mas, para uma ideia geral, ver: http://www.stratcom.mil/Media/Factsheets/Factsheet-View/Article/960492/us-cyber-command-uscybercom/
(8) O assunto é conhecido, mas, para uma posição neutra sobre o tema, ver: http://www.dw.com/pt-br/1983-reagan-anuncia-o-programa-de-defesa-guerra-nas-estrelas/a-484692
(9) Uma visão geral sobre este assunto, pode ser obtida em: http://noticias.terra.com.br/mundo/noticias/0,,OI2498233-EI294,00-China+e+Russia+criticam+EUA+apos+derrubada+de+satelite.html e também, pelo outro lado, apenas um ano depois, em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u103904.shtml
(10) A respeito do Tratado do Espaço: http://www.aeb.gov.br/50-anos-da-declaracao-da-onu-que-originou-o-tratado-do-espaco/
(11) Apesar da crítica contida na frase, isso não significa que, ao menos parte do comando e da inteligência americana, não tenha consciência do problema, como pode ser observado em qualquer dos artigos presentes em: http://index.heritage.org/military/2016/assessments/threats/
(12) Não se trata de uma opinião vazia. Em muitos sentidos, a posse de armas nucleares equivale apenas a uma espécie de passe livre para a atuação política em escala global. O que explica as preocupações da chamada comunidade internacional em relação a Coreia do Norte, mas, também, revela o quão pouco pode ser feito a respeito. Mais sobre o assunto em: http://www.bbc.com/portuguese/internacional-41130148