Ogivas Nucleares Americanas: arma estratégica!
A Energia Nuclear e a Tragédia da Ciência no Breve Século XX
“Meu pai foi um dos engenheiros em Hanford, entre 1940 e 1960. Passei minha infância brincando nas águas contaminadas do rio Columbia e bebendo leite radioativo. Meus pais morreram de câncer adquirido pela exposição à radiação em Hanford. Estou vivo ainda, acredito, porque tive minha glândula tiroide removida ao primeiro sinal de câncer. Hoje vivo com tetania, dor e fadiga constantes.”(1)
O historiador britânico Eric Hobsbawm, já falecido, nos legou a expressão era dos extremos para definir o que chamava de breve século XX, balizado entre dois marcos temporais: o início da Grande Guerra, em 1914; e o fim do império soviético, em 1991.(2)
Sua obra é considerada fundamental para entender o período, mas, é curioso observar que, apesar da abrangência temática, o livro mal toque a questão da energia nuclear, ou o exemplo máximo da tendência a autodestruição de nossa espécie: os lançamentos da bomba atômica sobre o Japão.
Principalmente, porque, de certa forma, a história do século XX é também, a história da energia nuclear e infelizmente, da dualidade contida nos avanços científicos e tecnológicos, na medida em que, enquanto ferramenta, dependem apenas marginalmente de amarras morais e éticas.
Para demonstrar este ponto, precisamos colocar o desenvolvimento das armas nucleares em perspectiva, considerando, arbitrariamente, quatro fases distintas que revelam uma espécie de “jornada do herói” da ciência (aparentemente, repetida em ciclos).(3)
Ato 1: a Descoberta e o Fim da Inocência
O século XX viu surgir o rádio, a televisão, o telefone, o avião e a penicilina entre vários outros inventos. Todos, em maior ou menor grau, relacionados a uma explosão criativa científica ocorrida nas suas primeiras décadas.
Naquele momento de crença arraigada no progresso através do conhecimento, tudo parecia possível, desde que houvesse tempo e recursos disponíveis.
Por isso, também foi um período fértil em teorias, dentre as quais, se destaca a fórmula mais conhecida da humanidade: E=m.c2.
Ao mesmo tempo, uma das equações menos compreendidas do ponto de vista dos impactos que causou em nossa história.
Em termos simples, ela significa que mesmo massas atômicas muito pequenas, podem liberar imensas quantidades de energia, quando tem seus núcleos fissionados.(4)
Embora Einstein seja considerado o pai desta formulação, o conceito era relativamente difundido e muitos outros cientistas especulavam sobre as formas de se produzir uma fissão nuclear de maneira eficiente, sem que, no entanto, o uso militar fosse considerado como virtualmente inevitável.
Neste contexto, quando a Segunda Guerra Mundial estourou, nada mais natural que os beligerantes estivessem, todos, em busca de uma solução para o problema.
Mas, por uma série de motivos, foram os americanos que a tornaram possível, com os resultados que todos conhecemos.
Imagem real da detonação da primeira bomba atômica, sobre Hiroshima
Ainda no final de 1945, diante da alegria geral pelo encerramento da guerra, o mundo parecia se importar pouco com o fato isolado de que, o primeiro uso prático da energia nuclear, houvesse sido militar.
Mas, era um estigma do qual esta tecnologia específica, jamais se livraria.
De um lado, no interior da comunidade científica, depois de tantos exemplos anteriores, finalmente surgiam umas poucas vozes, ainda tímidas, procurando debater a ética e a moral, na medida em que ficava evidente o potencial destrutivo da bomba atômica.(5)
De outro, a geopolítica internacional não permitiu que nossa heroína, a ciência, tivesse tempo de tomar fôlego.
Ao contrário, ela foi jogada em uma corrida contra o tempo, sem que pudesse raciocinar melhor sobre as consequências de suas ações.
Ato 2: a Corrida Armamentista e os Efeitos Colaterais
Quando a Segunda Guerra Mundial terminou, apesar de vários países serem nominalmente vencedores, apenas dois emergiram como superpotências, criando as bases para um mundo polarizado entre capitalismo e comunismo, sob a égide da Guerra Fria.
Neste novo cenário, os soviéticos tinham plena consciência do significado das armas nucleares, tanto que em 1949, já haviam desenvolvido e testado sua própria bomba.
Algo que transformava o mundo em um tabuleiro de xadrez, opondo dois impérios “adolescentes”.(6)
De um ponto de vista estritamente militar, este fato teve duas consequências nem sempre colocadas na perspectiva correta, mas, que determinaram a forma como americanos e soviéticos passaram a constituir seus arsenais, nas três primeiras décadas do pós-guerra.
Primeiro, devido ao tamanho do poderio militar convencional de ambos os lados, a bomba atômica dos anos 1940 era inútil, porque precisava ser transportada por bombardeiros de longo alcance, que poderiam ser abatidos muito antes de chegarem perto de seus alvos.
Segundo, uma pergunta tola, mas, natural: quantas bombas seriam necessárias para aniquilar o inimigo?
Como não havia uma resposta matemática, já que as variáveis envolvidas em uma guerra nuclear eram desconhecidas, a solução óbvia era: tantas quanto fosse possível construir.
A União Soviética sempre levou a sério a ideia de superar os americanos pelo aspecto numérico, o que gerou uma busca interminável pela vantagem quantitativa, por ambos os lados
O reflexo deste raciocínio nas ações políticas e militares da Guerra Fria, nos entregou uma realidade distorcida, em que as chamadas proxy wars ganharam cada vez mais importância.
Isso porque, se o segundo problema encontrou uma resposta na quantidade, o primeiro encontrou a sua, na ciência.(7)
Em paralelo ao desenvolvimento dos usos militares da energia nuclear, havia a corrida espacial e em muitos sentidos, um foguete espacial, como o conhecemos hoje, nada mais é do que um míssil balístico, com a única diferença, de que não se destina a explodir nada, nem ninguém.
Os ICBM´s são filhos da corrida espacial e a corrida espacial, é filha dos ICBM´s.
Basicamente, porque em algum momento, cientistas e militares perceberam que a distância entre os Estados Unidos e a União Soviética, poderia ser encurtada por mísseis capazes de cruzar o polo norte.
Neste ponto da história, ambos os lados trabalhavam insanamente para estocar milhares de mísseis intercontinentais, além de desenvolver plataformas de lançamento alternativas, como os submarinos nucleares e novos tipos de bombardeiros estratégicos.(8)
Em meio a este turbilhão, a ciência tentava encontrar usos pacíficos para a energia nuclear na forma de usinas para geração de eletricidade, algo que, considerando as demonstrações dos efeitos da radiação em Hiroshima e Nagasaki, tinha poucas chances de encontrar apoio popular.(9)
Resumindo, a nossa heroína parecia atravessar seu momento mais lúgubre.
Espremida entre a ameaça da hecatombe nuclear e a resistência ao uso de quaisquer outras formas de fissão nuclear.
Mas, foi aí que ocorreu uma virada inesperada de eventos, quebrando o impasse da Guerra Fria.
Ato 3: O Império Solitário e o Alívio Parcial das Tensões
Apesar do poderio convencional e nuclear, a União Soviética acabou derrotada economicamente, na paisagem desértica do Afeganistão
O desmoronamento do império soviético vinha se anunciando, para os mais atentos, desde meados dos anos 1980, mas, ninguém esperava que ocorresse de maneira tão abrupta, jogando metade do planeta em um cenário de incertezas.
E neste, os americanos se viram, finalmente, sós, no topo da cadeia alimentar da humanidade.
Algo que pode parecer admirável para os torcedores fanáticos do capitalismo mundial, mas que, na época, remetia a pergunta: que fazer com um arsenal nuclear no mundo contemporâneo?
Principalmente, com o antigo arsenal nuclear soviético, que era visto como uma ameaça, na medida em que podia acabar vendido a outros países, roubado por terroristas ou mesmo, em um cenário mais prosaico e realista, ser abandonado sem manutenção e cuidados apropriados.(10)
Como sabemos, a Rússia ocupou o vácuo soviético resolvendo este problema e além disso, o crescimento econômico e militar da China, entregou aos americanos, de bandeja, um motivo retórico para manter seu próprio arsenal.
Mas, nada disso elimina um problema de fundo, normalmente não explorado.
Para os americanos, desde o início, a bomba atômica sempre foi vista como uma arma estratégica.
O uso tático, embora tenha sido considerado, foi alvo de tratados de não proliferação entre americanos e soviéticos.
E o uso em nível operacional, no campo de batalha propriamente dito, evidentemente, continha mais riscos que ganhos potenciais, de forma que jamais foi levado a sério em termos de financiamento à pesquisa.(11)
Ou seja, após o uso limitado, contra o Japão na Segunda Guerra, todo o seu desenvolvimento posterior ocorreu em função do medo gerado pelo comunismo, para servir como garantia contra um ataque soviético ou, no pior cenário, servir a um ataque massivo contra o mesmo inimigo.
Em função disso, atualmente, os submarinos nucleares americanos continuam carregando coordenadas de alvos em solo russo.
Seus bombardeiros estratégicos não voam mais carregados de ogivas e grande parte de seus ICBM´s, são de modelos antigos, desenvolvidos nos anos 1960.(12)
Minutemen III: a espinha dorsal da força de ICBM´s americanos, é uma tecnologia com 40 anos de idade
Assim como as pesquisas gerais no campo da energia nuclear tiveram dificuldades em avançar nas últimas décadas, as ogivas americanas perderam seu principal objetivo de existir.
A China não é um tipo de ameaça comparável ao antigo império soviético, embora ainda possa vir a ser.(13)
Da mesma forma, outros países que eventualmente tentam entrar para o clube atômico, como o Irã ou mais recentemente, a Coreia do Norte, também não representam o mesmo tipo de ameaça global que os americanos viam no comunismo soviético.
Aí reside uma grande ironia do destino.
Com mais de seis mil ogivas nucleares de vários tipos em estoque, os americanos não tem nenhum alvo realista que justifique sua existência, além da retórica militarista da prontidão para qualquer eventualidade.
Uma justificativa que não pode ser negada, mas, que também não é suficiente para esconder o fato de que, diante das reais ameaças contemporâneas, como o terrorismo e a guerra cibernética, a energia nuclear, como a conhecemos, não tem respostas apropriadas.
O que significa que a humanidade teve uma espécie de vitória de Pirro.
Se nenhuma guerra nuclear ocorreu e no presente, parece cada vez menos provável, de outro lado, o medo continua presente, embora seja relativamente infundado.
O suficiente para devolver nossa heroína as suas origens.
Ato 4: Retorno e Redenção?
Este início de século XXI, já viu o nascimento de muitas novas tecnologias, a maioria das quais, relacionadas ao universo digital e todas, em maior ou menor grau, são o fruto acalentado de uma nova explosão criativa científica.
Neste novo ciclo de crença arraigada no progresso através do conhecimento, tudo parece possível, desde que tenhamos tempo e recursos disponíveis.
Por isso, também é um período fértil em teorias, dentre as quais, se destacam as novas possibilidades no campo da inteligência artificial.(14)
A inteligência artificial tem deixado o campo da ficção, na forma de computadores capazes de “pensar” e aprender
Embora não se possa negar que a energia nuclear, representada pelos ICBM´s continue tendo um papel central na geopolítica atual, ela também representa um ciclo tecnológico incompleto, na medida em que muito foi deixado de lado em seu desenvolvimento.
E é aí que está a tragédia da ciência do século XX.
Uma das suas maiores descobertas, jamais foi explorada a fundo, porque o medo nos impediu de seguir algumas das suas possíveis aplicações.
E mesmo agora, ainda olhamos para as armas nucleares, como a sua única face visível.(15)
O potencial transformador do conhecimento, é claro, ainda existe, mas, o mais provável é que a velocidade dos avanços em outras áreas, somada ao medo fossilizado que sentimos a respeito das armas nucleares, encaminhem a ciência para uma nova jornada, ainda que com andamento similar.
Abrindo com a presente chamada para a aventura – as máquinas que pensam por si; continuando com o desenvolvimento da tecnologia, do uso e do medo relacionado, até algum ponto crítico, do qual venha a emergir uma certa estabilidade, encerrando com o nascimento de um novo ciclo.
Neste sentido, é difícil saber se estamos apenas acumulando medos diversos, ou fazendo progressos efetivos. Isso, apenas o tempo será capaz de dizer e o juízo final, como de hábito, dependerá de estarmos vivos, enquanto espécie, para podermos avaliar os resultados.
Notas:
(1) O relato se refere a um dos sítios do Projeto Manhattan. No original: “My father was an engineer at Hanford from the 1940s to ’60s. I spent my childhood playing in the poisoned Columbia River and drinking radioactive milk. Both my parents died of cancer related to Hanford radiation exposure. I’m alive today, I believe, because I had my thyroid gland removed at the first sign of cancer. I now live with tetany, pain and bone-numbing fatigue.” Texto completo em: https://nuclear-news.net/2015/01/17/commemoration-of-the-manhattan-project-ignores-those-who-lived-downwind-and-paid-the-ultimate-price/#more-71877
(2) A obra em questão é uma ótima referência para a compreensão da história mundial recente e nos serve de base contextual neste artigo: A Era dos Extremos, Eric J. Hobsbawm, Cia. das Letras, 1995.
(3) O monomito (jornada do herói) é uma estrutura narrativa clássica, muito utilizada pela indústria cultural, envolvendo três, quatro ou mais fases inseridas em um ciclo: a chamada para a aventura, o aprendizado do herói, a maturidade do herói e enfim, sua redenção ou prêmio final, quando então, um novo ciclo se inicia. Mais a respeito em: https://www.jcf.org/about-joseph-campbell/
(4) Esta explicação é extremamente simplista. Uma compreensão mais aprofundada do princípio pode ser vista em: https://www.atomicheritage.org/history/science-behind-atom-bomb
(5) Por se tratar da primeira utilização do artefato, a força aérea americana teve o trabalho de registrar o evento em todos os detalhes possíveis, como pode ser observado em: https://commons.wikimedia.org/w/index.php?title=File%3APhysical_damage%2C_blast_effect%2C_Hiroshima%2C_1946-03-13_~_1946-04-08%2C_342-USAF-11071.ogv e https://commons.wikimedia.org/w/index.php?title=File%3AHiroshima_Aftermath_1946_USAF_Film.ogv
(6) O teste soviético mexeu com os nervos do mundo ocidental, retirando os americanos de sua curta zona de conforto, como pode ser visto em: http://digitalarchive.wilsoncenter.org/document/134436
(7) Proxy Wars, ou Guerras por Procuração, tem seus exemplos mais famosos nas guerras da Coreia, Vietnã e Afeganistão. Sem poderem se enfrentar diretamente, americanos e soviéticos incentivavam e financiavam conflitos regionais de acordo com seus interesses particulares. Quando um se envolvia diretamente, o outro se limitava a financiar e treinar os inimigos daquele.
(8) O número exato de ICBM´s (Mísseis Balísticos Intercontinentais) e outros tipos de sistemas contendo ogivas nucleares nunca foi de conhecimento público, mas, pode-se estimar que, durante a Guerra Fria, cada lado manteve algo como 10 mil ogivas operacionais. Mesmo hoje, os números não são muito menores: http://time.com/4893175/united-states-nuclear-weapons/
(9) As primeiras usinas nucleares são da década de 1950 e 1960 e assim como os aviões, por mais seguras que possam ser, sempre causaram medo e apreensão. Além disso, os poucos acidentes, tem um impacto muito maior, que a imensa quantidade de reatores funcionando há décadas, como podemos inferir pela simples lembrança de dois deles, em: http://www.bbc.com/portuguese/internacional/2016/04/160426_chernobyl_ucrania_aniversario_imagens_fd e também em: http://www.world-nuclear.org/information-library/safety-and-security/safety-of-plants/fukushima-accident.aspx
(10) A respeito, ver: https://elpais.com/diario/1991/09/09/internacional/684367206_850215.html
(11) No jargão militar o nível estratégico corresponde ao cenário geral, o tático, aos chamados teatros de operações, de âmbito regional e o nível operacional se restringe a cada batalha.
(12) Para uma visão panorâmica da situação: http://index.heritage.org/military/2017/assessments/us-military-power/u-s-nuclear-weapons-capability
(13) A China sempre se caracterizou por uma atuação mais suave do que a russa na política internacional, mas, há muitos fatores indicando que o futuro pode ser diferente: https://www.bloomberg.com/news/articles/2017-10-17/xi-to-put-his-stamp-on-chinese-history-at-congress-party-opening
(14) É preciso lembrar que a humanidade só se deu conta da bomba atômica, quando ela já existia. Por isso, é compreensível que muitas pessoas, hoje, possam não perceber a computação cognitiva, como o que é: uma forma primitiva de inteligência artificial, já presente em nossas vidas: https://www.ibm.com/watson/
(15) Mesmo no campo militar há pesquisas pouco exploradas, como os pulsos eletromagnéticos gerados em consequência da fissão nuclear. Em teoria, seria possível destruir ou desativar todos os sistemas de comunicação de um país através deste método. Sobre este assunto, ver: http://www.dtic.mil/docs/citations/ADA484672