Soldado Americano Infalível e Vestido para Matar
O soldado americano é, para todos os efeitos, infalível.
Conta com apoio logístico e tecnológico, nenhum outro exército é capaz de oferecer.
“Dressed to kill, destined to rule”
Em que se baseia a estrutura e a confiança de um império?
Acima de tudo: o que é um império nos dias atuais?
Embora tenhamos um exemplo único e também, óbvio; compreender os motivos pelos quais os Estados Unidos se tornaram o que são, exige analisar a realidade além das aparências.
Em primeiro lugar, temos alguns aspectos históricos, comuns aos maiores impérios ocidentais já vistos: há uma fase de consolidação, seguida de outra, de expansão até que, em algum momento, se inicie um processo de declínio, nem sempre perceptível enquanto ocorre.
Assim como os romanos antigos e os britânicos, em séculos mais recentes, os americanos precisaram, primeiro, dar forma definitiva ao seu núcleo territorial.
É nesta fase que começa a se formar, também, uma cultura militarista, dando origem ao estigma do soldado americano.
Em um período de pouco menos de cem anos, os americanos se libertaram do jugo colonial, expandiram suas fronteiras do oceano atlântico até o pacífico e entre estes feitos, ainda arranjaram tempo e disposição para brigarem entre si, durante a Guerra Civil.(1)
Minutemen: uma lembrança clássica do militarismo americano
Mataram ingleses, mexicanos, índios e a si próprios, em ondas sucessivas de combates que pareciam intermináveis, mas, em fins do século XIX, haviam encontrado uma fórmula social isolacionista, escrita e reescrita em sangue, pacificada nos artigos e emendas de sua carta magna.
Contudo, pouco depois de os Estados Unidos terem concluído o processo de consolidação de seu território, uma tempestade se formava na Europa.
Antigos impérios coloniais se debatiam ante o choque de suas ambições.
Observando o conflito de fora, os americanos entendiam a chamada Grande Guerra, como um problema alheio, não queriam se aventurar em conflitos que não lhes diziam respeito, mas, naquele momento, nenhum país era, ou poderia ser, uma ilha.
Querendo ou não, foram dragados para os campos de batalha em 1917.(2)
Ali começava a transformação da imagem do soldado americano, de um agente da destruição interna, para uma peça central da cultura local, ganhando o status de defensor da liberdade.
“Liberty Fighters”: centenário da participação americana na Grande Guerra
Mas, o principal ganho para o país estava relacionado ao desenvolvimento de sua indústria, que ao longo da guerra, passou a ser uma das principais fontes de armamentos e outros itens, incluindo material bélico pesado, para as nações europeias.
Enfim, o conflito terminou sem que os problemas europeus fossem resolvidos.
Ao contrário, novos foram criados e então, tivemos a segunda tempestade.
Desta vez, a confiança americana em sua política isolacionista era ainda maior.
Com a lembrança recente dos mortos na primeira, a sociedade se recusava a entregar os filhos, para morrer na Segunda Guerra Mundial.
Os japoneses trataram de encerrar os sonhos americanos de neutralidade, ao atacarem Pearl Harbor.
Os alemães, por sua vez, trataram de ensiná-los como lutar as guerras futuras: coordenando as diversas forças armadas, com movimentos rápidos e ações por trás das linhas inimigas.(3)
Pela experiência acumulada, as forças americanas aprenderam a serem adaptáveis às circunstâncias.
A10 Tundherbolt: herdeiro moderno dos Stukas alemães, utilizados para ataque ao solo
No fim, ganha a guerra, o soldado americano passava a não ter mais o direito de se eximir dos problemas mundiais.
A indústria e a sociedade norte-americanas haviam aprendido a total extensão do conceito “esforço de guerra” e a nação, havia se moldado, de forma definitiva, para a expansão.
O destino, entretanto, entregou aos americanos a sua própria Cartago.
Um inimigo a altura, que assim como os cartagineses antigos, apresentava ao mundo uma outra opção de organização social.
Um império concorrente, personificado na União Soviética.
Se faltava alguma coisa para que a sociedade americana passasse a aceitar o papel de potência mundial, o comunismo preencheu esta lacuna e todos os elementos necessários, passaram a estar presentes, solidificando a cultura militarista em seus corações e mentes.
Mas, nem americanos, nem soviéticos, poderiam constituir impérios como os antigos; dispostos a resolver suas questões diretamente, a partir da oposição sangrenta de milhares de soldados de cada lado, em campos de batalha pelo mundo. Isso, por um único e assustador motivo.
M.A.D.: destruição mútua garantida e então, o mundo mudou, mais uma vez
Mutual Assured Destruction ou, a certeza de que, qualquer dos lados que atacasse primeiro, a retaliação do outro, significaria a destruição de ambos e provavelmente, da sustentabilidade da vida neste planeta.
Sendo assim, temos uma nova configuração de confrontação nas proxy wars.
“Guerras por procuração” como a da Coreia, na década de 1950, do Vietnã, nas décadas de 1960 e 1970 e finalmente, do Afeganistão, quando os americanos descobriram como derrotar o império soviético: através da fragilidade competitiva de sua economia.(4)
Isso determinou duas mudanças importantes na mentalidade militar, para o desenvolvimento das estratégias mais atuais.
Primeiro, a percepção de que a guerra tem muitas frentes, além do combate físico, da espionagem tradicional ou da formação de alianças
Mujahidin: armados pelos americanos, destruíram centenas de milhões de dólares em equipamentos soviéticos
Segundo e mais importante, para o que nos interessa, que a quantidade de soldados é menos relevante que a qualidade deles.
Assim, o exército americano chegou ao século XXI, bem equipado, remunerado e ainda, contando com um apoio quase incondicional da população.
O governo pode cometer erros, declarar guerras não desejadas, mas, o soldado americano é, para todos os efeitos, infalível.(5)
Em grande parte, porque conta com um tipo de apoio logístico e tecnológico que nenhum outro exército é capaz de oferecer.
Ao menos, não com a mesma qualidade e menos ainda, com presença em qualquer ponto do globo.
Neste sentido, as forças americanas reinam absolutas, embora, algumas outras nações ainda possam representar, como de fato representam, uma ameaça.
Rússia e China, sobretudo, não são países com os quais os americanos possam fazer um “passeio no parque”, como fizeram no Iraque nos anos 1990.(6)
Principalmente, por serem potências nucleares, mas, fora este aspecto, não há comparação possível.
Começando por um detalhe, talvez não tão conhecido da população em geral: a marinha americana é infinitamente maior e melhor equipada que todas as suas possíveis concorrentes.
Construída em torno dos chamados Strike Groups, comandados por ao menos um porta-aviões nuclear.
Strike Group: porta-aviões nunca navegam sozinhos
Junto a ele, navegam outros navios de superfície, dedicados a sua proteção e também, ao suporte de tropas em terra, perseguição e destruição de submarinos inimigos e patrulhamento de extensas áreas.
Ao todo, há dez destes grupos em operação, com mais um em construção.
Há dois aspectos destes grupos para os quais gostaríamos de chamar a atenção.
Primeiro, para dar ideia da capacidade ofensiva, um único porta-aviões nuclear, pode carregar cerca de 60 aviões de combate, além de alguns helicópteros.(7)
Toda a força aérea brasileira, não seria páreo para um destes grupos.
No quesito de superioridade aérea, contamos com cerca de 50 caças F-5 operacionais, parcialmente modernizados, enquanto aguardamos os pouco mais de 30 Gripen, recentemente comprados da Suécia, para substituí-los.(8)
Esta comparação embaraçosa, serve apenas para situar o foco no objetivo destes grupos: garantir a segurança do espaço aéreo e das linhas de abastecimento, para eventuais operações em terra, quando necessárias.
O segundo ponto de atenção, está justamente no fato de funcionarem como postos avançados do comando central.
Para intervenções rápidas, estas “matilhas” são capazes de desembarcar um ou mais grupos de elite em qualquer lugar do planeta.
Um pelotão padrão de Navy Seals: poucos, mas, bem armados e preparados
Neste conjunto coordenado de forças, o soldado americano não é um entre milhares, marchando para um moedor de carne, mas, uma verdadeira ponta de lança da expansão do império.
Um conceito que se espalha pela sociedade através da indústria cultural.
O próprio exército desenvolve e disponibiliza um game FPS – first person shoter – chamado America´s Army: Proving Grounds, destinado a ser um primeiro contato realista com o treinamento e atuação destes grupos, servindo também, como fonte de atração de novos recrutas.(9)
Isso, para não falar em Hollywood, que desde a Segunda Guerra, pelo menos, serve como agente de propaganda para a máquina de guerra, mesmo, quando resolve criticá-la.
Afinal, como dissemos, o governo pode ser imperfeito, os soldados, não.
É assim que, filmes como Black Hawk Down, glorificam até mesmo, as eventuais falhas do conceito, apelando para uma antiga fórmula, conhecida como “no man left behind”,(10) o que, bem pensado, não deixa de ser um paradoxo.
Black Hawk Down: Navy Seals, Deltas e Rangers, uma ode as forças de elite americanas
Ou seja, quando se trata de guerra, por mais bem treinados e equipados que sejam, soldados, incluindo o soldado americano, morrem.
E por morrerem, deixam os demais cidadãos, desconfortáveis com a ideia de tê-los mandado para a frente de combate.
Mesmo em uma sociedade acostumada ao conflito, como a americana, o que se espera é que todos voltem para casa.
Por isso, há sempre uma pressão social para reduzir ao máximo o emprego de forças terrestres e de outro lado, um esforço coletivo no desenvolvimento tecnológico.
Neste sentido, claro, se destacam os drones, mas, eles são apenas aeronaves não tripuladas.
Há limites para o que podem fazer e para cumprir todas as funções em terra, seriam necessários outros avanços que, por outro lado, aparentemente, não estão tão longe quanto poderíamos imaginar.
Em conjunto com a tradicional indústria bélica americana, centros dedicados à pesquisa e inovação, como a DARPA e a Boston Dynamics, vem trabalhando em protótipos de exoesqueletos, robôs e também, em modelos (ainda primitivos) de inteligência artificial.(11)
Protótipo da Boston Dynamics: o soldado do futuro não será como imaginamos
É possível que ainda demore para vermos algo como um “exterminador do futuro” atuando em campos de batalha, em substituição aos seres humanos, mas, já estamos vendo muitos avanços nesta área e há mais acontecendo do que sabemos oficialmente, por motivos óbvios.
Além disso, a própria guerra como a imaginamos, enquanto cidadãos comuns, baseada na conquista de objetivos territoriais, já não faz mais sentido.
Um exemplo disto, foi o ciberataque promovido pelos americanos, contra instalações de enriquecimento de urânio no Irã, poucos anos atrás.(12)
Porque gastar recursos e vidas em terra, se umas poucas linhas de comando e um simples vírus de computador, podem atingir o objetivo desejado?
E é neste novo cenário que o soldado americano está passando por mais uma transformação.
De um combatente presente fisicamente no front, está gradualmente virando um hacker ou ainda, um piloto remoto de unidades robóticas descartáveis.
Pelo menos, é isto que se desenha para o futuro próximo.
Mas, este novo mundo globalizado, também tornou estas tecnologias mais baratas.
Países como a Rússia e a China, tem acesso aos mesmos recursos.
Que tipo de ameaça representam para o império americano, porém, é difícil dizer, mesmo porque, até o momento, nada indica que possam se opor a ele em escala global.
No máximo, podem criar dificuldades.
Obstáculos eventuais, com os quais, o soldado americano tem lidado, com base em seu histórico de adaptabilidade, duramente aprendido ao longo dos séculos.
Se há algo apontando para o início da fase de declínio, certamente, não é a força militar.
Notas:
(1) A declaração de independência é de 1776 e a Guerra Civil, terminou em 1865, entretanto, a conquista do oeste não tem uma periodização rígida. De modo geral, o território se consolida ao final da Guerra do México, em 1848. Mas, há a incorporação posterior do Arizona, Alasca e Havaí.
(2) Visando cortar as linhas de suprimentos britânicas e francesas, o império alemão passou a afundar navios mercantes indiscriminadamente, principalmente, americanos.
(3) A chamada blitzkrieg que, na realidade, influenciou as táticas de combate de todos os exércitos envolvidos, mas, foi especialmente assimilada pelos americanos.
(4) O “ataque” à economia soviética é mais amplo, mas, sobre este ponto em específico, há um filme recente: Charlie Wilson´s War, de Mike Nichols, com Tom Hanks e Julia Roberts (2007).
(5) A indústria cultural americana produziu muitos filmes críticos, especialmente a respeito da Guerra do Vietnã, com Full Metal Jacket (1987), Platoon (1986) e Apocalipse Now (1979) sendo, possivelmente, os melhores exemplos.
(6) A “Tempestade no Deserto” é um bom exemplo contemporâneo do emprego dos conceitos da blitzkrieg: destruição da força aérea inimiga ainda no solo, movimentos rápidos de forças blindadas pelo interior do país e tomada de pontos estratégicos com utilização de forças especiais atrás das linhas inimigas.
(7) A configuração é bastante variável e algumas fontes sustentam números maiores, mas, uma visão geral pode ser obtida aqui: http://www.military.com/equipment/nimitz-class-aircraft-carrier
(8) A defesa aérea não se reduz a uma questão de quantidade de caças, mas, para uma ideia geral da situação, ver: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2013/08/sem-novo-aviao-fab-canibaliza-6-cacas-para-manter-voos-em-2013.html A notícia é velha, mas, a única mudança de lá para cá, foi a definição dos Gripen, como os novos caças da FAB.
(9) Similar a outros jogos do gênero, mas, com foco em realismo e atuação coordenada dos jogadores: http://store.steampowered.com/app/203290/Americas_Army_Proving_Grounds/
(10) Traduzido como Falcão Negro em Perigo no Brasil, filme de Ridley Scott de 2002.
(11) O robô da imagem pode ser visto em ação aqui: https://www.youtube.com/watch?v=ISznqY3kESI, mas, a pesquisa das duas empresas é vasta. Para os mais curiosos, os links dos respectivos canais estão logo abaixo.
(12) Embora a participação no episódio não seja admitida publicamente pelos americanos, seria ingênuo acreditar em coincidências: http://www.bbc.com/news/technology-34423419
Outras Referências:
Visão abrangente sobre a ligação entre a blitzkrieg e as táticas modernas das forças americanas: http://history.unt.edu/blitzkrieg-desert-storm
Mais sobre America´s Army: Proving Ground, em: http://www.nytimes.com/2002/07/11/technology/uncle-sam-wants-you-to-play-this-game.html
Sobre a DARPA e a Boston Dynamics, ver os respectivos canais no Youtube: https://www.youtube.com/user/DARPAtv e https://www.youtube.com/user/BostonDynamics
Uma excelente fonte de visões do futuro: http://www.lockheedmartin.com/us/innovations.html
Fontes gerais de informações sobre as forças armadas americanas:
http://www.military.com/
https://www.militaryfactory.com/
Páginas recomendadas do exército americano:
https://www.goarmy.com/army-cyber.html
https://www.goarmy.com/special-forces.html